sábado, 10 de janeiro de 2009

Contos Para Pensar V

Só Por Amor

Caminho pelo meu caminho.
O meu caminho é uma via com um só rasto: o meu.
À minha esquerda, um muro eterno separa o meu caminho do caminho de alguém que transita ao meu lado, do outro lado do muro.
De vez em quando, neste muro encontro um buraco, uma janela, uma fenda... E posso olhar para o caminho do meu vizinho ou vizinha.
Um dia, enquanto caminho, parece-me ver, do outro lado do muro, uma figura que transita ao meu ritmo, na mesma direcção que eu.
Ela também me vê. Olha para mim.
Torno a olhar para ela.
Sorrio-lhe... Ela sorri-me.
Um momento depois, ela segue o seu caminho e eu apresso o passo porque espero ansiosamente outra oportunidade para me cruzar com essa mulher.
Na janela seguinte detenho-me um minuto.
Quando ela chega, olhamos um para o outro através da janela.
Digo-lhe por meio de sinais quanto gosto dela.
Responde-me por meio de sinais. Não sei se significam o mesmo que os meus, mas tenho a intuição de que ela entende o que lhe quero dizer.
Sinto que ficariam muito tempo a olhar para ela e deixando que ela olhe para mim, mas sei que o meu caminho continua...
Digo a mim mesmo que talvez haja mais adiante uma porta. E espero poder transpô-la para me encontrar com ela.
"Em nada há uma certeza maior do que no desejo", por isso esforço-me por encontrar a porta que imagino.
Começo a correr com os olhos cravados no muro.
Um pouco mais adiante, aparece a porta.
Ali está, do outro lado, a minha companheira, agora já amada e desejada. À espera... à minha espera...
Faço-lhe um gesto. Ela devolve-me um beijo pelo ar.
Faz-me um sinal como que a chamar-me. É tudo aquilo de que preciso. Avanço em direcção à porta para me juntar a ela, do seu lado do muro.
A porta é muito estreita. Passo a mão, passo o ombro, encolho um pouco o estômago, retroço-me um pouquinho sobre mim mesmo, quase consigo passar a cabeça... Mas a minha orelha direita fica entalada.
Empurro.
Não há maneira. Não passa.
Não posso usar a mão para retrocê-la, porque não poderia meter ali nem um dedo...
Não há espaço suficiente para passar com a minha orelha, por isso tomo uma decisão... (porque a minha amada está ali, à minha espera).
(Porque é a mulher com a qual sempre sonhei e me está a chamar...)
Tiro uma navalha do meu bolso e, de um só golpe rápido, atrevo-me a dar um corte na orelha, para que a minha cabeça passe pela porta.
E consigo-o: minha cabeça consegue passar.
Mas, depois da minha cabeça, vejo que é o meu ombro que fica entalado.
A porta não tem a forma do meu corpo.
Faço força, mas não há remédio. A minha mão e o meu corpo passaram, mas o meu outro ombro e o meu outro braço não passam...
Já nada importa, por isso...
Retrocedo e, sem pensar nas consequências, tomo impulso e forço a minha passagem pela porta.
Ao fazê-lo, a pancada desarticula o meu ombro e o braço fica pendente, como sem vida. Mas agora, felizmente, numa posição tal que posso atravessar a porta...
Já estou quase do outro lado.
Precisamente quando estou prestes a acabar de passar pela fenda, dou-me conta de que o meu pé direito ficou entalado do outro lado.
Por muito que me esforce e continue a esforçar-me, não consigo passar.
Não há maneira. A porta é demasiado apertada para que o meu corpo passe por ela.
Demasiado apertada: não passam os meus dois pés...
Não tenho dúvidas. Já estou quase ao alcance da minha amada.
Não posso atirar-me para trás... Por isso agarro no machado e, cerrando os dentes, dou o golpe e desprendo a perna.
Ensanguentado, aos saltos, apoiado no machado e com o braço desarticulado, com uma orelha e uma perna a menos, encontro-me com a minha amada.
- Aqui estou. Passei por fim. Olhaste para mim, olhei para ti, enamorei-me. Paguei todos os preços por ti. Vale tudo na guerra e no amor. Não importam os sacrifícios. Valiam a pena se eram para encontrar-me contigo, para podermos seguir juntos... Juntos para sempre...
Ela olhou para mim enquanto o seu rosto ficava crispado num esgar de repulsa.
- Assim não, assim não quero... Eu gostava de ti quando estavas inteiro.



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