quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Contos Para Pensar IV

Dar-se Conta


Levanto-me pela manhã.
Saio de casa.
Há um buraco no passeio.
Não o vejo,
e caio nele.

No dia seguinte
saio da minha casa,
esqueço-me de que há um buraco no passeio,
e torno a cair nele.

Ao terceiro dia
saio da minha casa procurando recordar-me
de que há um buraco no passeio.
No entanto,
não me recordo
e caio nele.

Ao quarto dia
saio da minha casa procurando recordar-me
do buraco no passeio.
Recordo-me e,
apesar disso,
não vejo a cova e caio nela.

Ao quinto dia
saio de minha casa.
Recordo que tenho de ter presente
o buraco no passeio
e caminho a olhar para o chão.
E vejo-o e,
apesar de o ver,
caio nele.

Ao sétimo dia
saio de minha casa.
Vejo o buraco.
Tomo impulso,
salto,
roço com a ponta dos meus pés o rebordo do outro lado,
mas não é suficiente e caio nele.

Ao oitavo dia,
saio de minha casa,
vejo o buraco,
tomo impulso,
salto,
chego ao outro lado!
Sinto-me tão orgulhoso por ter conseguido
que o celebro dando saltos de alegria...
E, ao fazê-lo,
caio outra vez no buraco.

Ao nono dia,
saio de minha casa,
vejo o buraco,
tomo impulso,
salto-o
e sigo o meu caminho.

Ao décimo dia,
hoje precisamente,
dou-me conta
de que é mais cómodo
caminhar...
pelo passeio em frente.


Qualquer semelhança com o amor, é pura coincidência...por mais que se veja o buraco, que se caia, se salte, se passe à volta, ele está lá e caminhar pelo passeio em frente às vezes parece mais difícil do que passar os dias a cair no buraco. E é tão bom aquele buraco, aquele amor que no faz cair, mas a gente cai porque ama e quem ama não se magoa nunca, mesmo que tenha os joelhos esfolados, a cara arranhada, o coração partido em mil bocadinhos.
Não dói nada, não foi nada, já passou.
Não dói, não tem importância, deixa lá, porque quem ama perdoa sempre.
Fica para outro dia...para a próxima, quem sabe...
E a esperança ajuda-nos a levantar. Todos os dias, a toda a hora, sempre! Porque quem ama nunca perde a esperança.
Chego à conclusão que quem ama acaba por desenvolver muito boas qualidades. Uma pena que quem a gente ama nem repare nelas...
Quem ama é paciente, espera, e espera porque acredita que um dia vão arranjar aquele buraco no passeio.
Espera nunca passar para o outro passeio, porque é impensável, porque o amor por aquele passeio com buraco é maior, melhor...

Quando se passa para o passeio em frente, ou se finge que se passa para o passeio em frente, fica-se a ver o buraco, todos os dias. Não o tocamos, podemos nem vê-lo, mas o facto é que continua lá e enquanto continua, nem vale a pena fingir que caminhamos no passeio em frente porque temos o prazer mórbido de voltar a cair no buraco... e cair, cair, cair tantas vezes, que um dia, ao levantarmo-nos reparamos que efectivamente o passeio do lado é melhor... até que esse novo passeio também fica com um buraco, no qual voltamos a cair...

Era tão mais fácil se chegássemos ao décimo dia e não regressássemos ao primeiro dia... mas o amor é mesmo assim... feito de nódoas negras sentimentais, arranhões psicológicos e corações partidos em mil bocadinhos.

Sem comentários:

Enviar um comentário